Agora, quase 30 anos depois, Cidade das Sombras passou por uma renascença semelhante à de Blade Runner. Além de ter um fervoroso culto de seguidores, o público descobriu o poder do filme. Os críticos o reconhecem como um dos maiores filmes de ficção científica, e seu legado continua até hoje. Com influência inegável, atmosfera rica e filosofia provocativa, ele também merece um lugar no cânone dos Grandes Filmes.
Dark City mistura o clássico film noir e a ficção científica
Cidade das Sombras Apresenta um Mistério Atmosférico
Cidade das Sombras começa com o Dr. Daniel P. Schreber (Kiefer Sutherland) olhando para a paisagem urbana sob uma noite estrelada. Ligeiramente deformado e mancando, ele já enfrentou dificuldades em sua vida. Ele vaga por uma cidade que parece saída de um filme de detetive dos anos 1930: muita arquitetura art déco, homens de chapéu fedora e trenchcoats. O tique-taque de Sutherland e a trilha inquietante de Trevor Jones transmitem uma mensagem ao público: algo está acontecendo.
Em um banheiro de hotel, John Murdock (Rufus Sewell) acorda em uma banheira sem memória de quem é ou como chegou ali. No quarto, ele encontra o corpo sem vida de uma mulher. Murdock sai do quarto e percebe que todos no hotel estão dormindo. Ele também vê um grupo de homens pálidos e carecas, todos vestidos de preto, se aproximando, e percebe que algo está errado. Ele consegue acordar o recepcionista, que sugere que ele procure sua carteira em um automat próximo.
Murdock consegue escapar da captura e recupera sua carteira no automat. Ele parte em busca de sua esposa, Emma (Jennifer Connelly), na esperança de que ela possa lhe dar algumas respostas. Enquanto isso, o durão Detetive Bumstead (William Hurt) examina a cena do crime e descobre desenhos em espiral feitos com sangue. Eles evocam desenhos semelhantes feitos por seu ex-parceiro, que recentemente teve uma crise psicótica e falava sobre a cidade não ser real. Bumstead procura por Murdock, começando a suspeitar de uma conspiração maior em andamento.
Murdock se esconde na cidade e, à meia-noite, testemunha todos os seus cidadãos adormecerem. Mais homens carecas vestidos de preto aparecem — chamados de “Estranhos” — e, de alguma forma, alteram a realidade com suas mentes. Dr. Schreber ajuda os Estranhos, injetando nos cidadãos da cidade novas memórias para mudar suas personalidades. Bumstead localiza Emma, e os dois começam a procurar Dr. Schreber, que afirma ser o psiquiatra de Murdock.
Dark City Reimagina o Gênero Sci-Fi Noir
Assim como Blade Runner, Dark City Cria uma Nova Mistura de Gêneros
Em uma câmara estranha sob a cidade, os Estranhos se reúnem em pânico: eles percebem que Murdock escapou deles porque ele também pode alterar a realidade com sua mente (um processo chamado “sintonização”). O líder deles, Sr. Livro (Ian Richardson), exige que encontrem Murdock a qualquer custo. Livro também instrui Schreber a injetar as memórias de Murdock — as memórias que ele estava suposto a ter, de qualquer forma — em outro Estranho, Sr. Mão (Richard O’Brien). Mão acredita que se souber da vida de Murdock, poderá prever seus movimentos.
Bumstead se encontra com Murdoch, e os dois confrontam Schreber. Schreber avisa a dupla que os Estranhos são, na verdade, uma raça moribunda de alienígenas parecidos com lulas que habitaram corpos humanos. Eles sequestraram a população da cidade anos atrás e usam sua Sintonia para fazer a cidade crescer e mudar. O Schreber escravizado os ajuda, sob a ameaça de tortura. Os Estranhos apagaram sua memória, e assim ele não teve escolha a não ser se submeter.
Schreber explica ainda que os Estranhos esperam entender o mistério da alma humana na esperança de que isso possa salvar sua espécie. Murdoch interferiu em seus experimentos com sua capacidade de resistir aos poderes sonambúlicos deles e sua habilidade de Sintonizar. Bumstead e Murdoch duvidam de Schreber e seguem em direção à Praia Shell, um lugar que Murdoch se lembra da infância. Ao chegarem a um beco sem saída na borda da cidade, Murdoch e Bumstead quebram um buraco na parede, revelando o espaço exterior atrás dela. Schreber diz a Murdoch que criou um coquetel de memória que permitirá a Murdoch usar seus poderes de Sintonização ao máximo. Antes que Murdoch possa usá-lo, o Sr. Hand chega com Emma como refém, matando Bumstead ao jogá-lo no espaço.
Os Estranhos conseguem capturar Schreber e Murdoch, levando-os para seu esconderijo subterrâneo. Os Estranhos também levam Emma para outro lugar na cidade e apagam suas memórias. O Sr. Livro declara que a mente de Murdoch guarda as respostas para a sobrevivência deles, e que todos os Estranhos tomarão as memórias de Murdoch como se fossem suas. Quando ordenam que Schreber extraia a mente de Murdoch, ele, em vez disso, injeta nele toda a gama de suas memórias, com uma ressalva: Schreber se inseriu em momentos-chave ao longo da vida de Murdoch, instruindo-o sobre como se sintonizar. Encorajado, Murdoch usa seus poderes para libertar Schreber e ataca os Estranhos.
Cidade das Trevas Vê uma Batalha de Vontades na Ficção Científica
Cidade das Sombras Pergunta Quem Cria o Universo
Uma batalha colossal acontece enquanto Murdoch usa seus poderes para destruir o esconderijo e as máquinas dos Estranhos. Ele e o Sr. Livro se envolvem em um furioso duelo de vontades, embora Murdoch acabe ganhando a vantagem, matando-o. Schreber informa a Murdoch que ele tem o poder de fazer qualquer coisa com sua mente, mas o avisa que as memórias de Emma estão perdidas, e sem o equipamento do Estranho, ele não pode restaurá-las.
Murdoch, sem se deixar abater, parte em busca de Emma. Antes de sair, encontra o Sr. Hand, que o informa que ele morrerá ao absorver as memórias de Murdoch. Murdoch alerta o Sr. Hand de que os Estranhos não conseguem compreender os humanos; eles são mais do que apenas o produto de suas memórias. Murdoch cria a Praia Shell usando seus poderes de Sintonia, e encontra Emma — agora renomeada como Anna — lá. Os dois partem juntos enquanto Murdoch ordena que o sol nasça, iluminando a cidade e a praia pela primeira vez.
No que diz respeito a diretores, Alex Proyas sempre desfrutou de admiração crítica e cult, embora o sucesso mainstream tenha permanecido esquivo. O Corvo se tornou um sucesso e anunciou Proyas como um grande artista visual, mas a morte da estrela Brandon Lee prejudicou a produção e ofuscou o sucesso do filme. Eu, Robô, com Will Smith, viu Proyas tentar fazer um filme de pipoca de Hollywood, embora esse filme carecesse da inteligência e do estilo que geralmente tornam suas obras tão fascinantes. Seu primeiro filme, Espíritos do Ar, Gremlins das Nuvens, fez dele um sucesso entre o público de cinema alternativo, mas nunca encontrou sucesso mainstream. Melhor não falar sobre o fracasso Deuses do Egito.
Em outras palavras, Proyas teve uma carreira incomum, muitas vezes flertando com o grande sucesso que o catapultaria para o mesmo patamar de outros autores consagrados de Hollywood: Christopher Nolan, Rian Johnson ou Denis Villeneuve. Dark City, por direito, deveria tê-lo colocado lá, mas assim como Ridley Scott e Blade Runner mais de uma década antes, Proyas provou estar à frente do seu tempo. Essa distinção tem um lado positivo e negativo: afirma Proyas como um grande artista e Dark City como um grande filme, embora o diretor não consiga aproveitar as recompensas que ele e o filme mereciam.
Cidade das Sombras Marca um Apogeu na Ficção Científica
Alex Proyas Criou uma Obra-Prima da Ficção Científica
Não apenas Cidade das Sombras é um filme incrível, como também é o melhor trabalho de Proyas. Poucos filmes possuem uma atmosfera e um estilo tão intensos. Isso vem da maneira como Proyas canaliza outros diretores no filme. Observadores atentos notarão alusões visuais a Fritz Lang, Tim Burton, Katsuhiro Otomo, Clive Barker e David Lynch, entre outros. Isso confere ao filme uma qualidade onírica própria. Tudo no filme parece uma memória vaga e incompleta, assim como John Murdoch enfrenta ao longo da trama. O cenário da cidade de noite perpétua reforça essa sensação. Escuridão e sombra geram mistério e uma sensação de perigo.
Cidade das Sombras pode não ter conseguido atrair um público, em parte, porque Proyas insistiu em escalar os atores perfeitos para cada papel em vez de escolher estrelas de bilheteira. Em 1998, Jennifer Connelly e Rufus Sewell tinham aparecido em vários filmes, mas não tinham o mesmo valor de nome que contemporâneos como Keanu Reeves ou Sandra Bullock. Richard O’Brien se tornou um ícone em The Rocky Horror Picture Show, mas só alcançou status de estrela no Reino Unido. De todo o elenco, apenas Hurt e Sutherland tinham reputações como atrativos de bilheteira, e mesmo assim, nenhum deles tinha um filme de sucesso há algum tempo.
Dessa forma, Cidade das Sombras remete a uma época diferente, quando um estúdio como a New Line Cinema concedia um orçamento generoso a um diretor cult, elenco desconhecido e uma história desafiadora. E embora esse risco não tenha gerado lucros imediatos nas bilheteiras, resultou em um filme para a eternidade. Sewell, com seus olhos grandes e levemente tortos, é o John Murdoch ideal, projetando constantemente nervos à flor da pele e frustração. Connelly, com seus cabelos escuros e olhos claros, lembra a presença de tela de Vivien Leigh ou Hedy Lamarr. Ela se torna uma femme fatale perfeita e acrescenta ao estilo noir.
O’Brien, em um papel sob medida, entrega uma performance de carreira. Seu Mr. Hands mistura masculinidade e feminilidade, desejo homicida e gentileza, ameaça e curiosidade infantil. O personagem é ao mesmo tempo assustador e trágico. Hurt, assim como Connelly, tem o visual perfeito para interpretar um detetive de drama criminal dos anos 1940, contornando seu papel com uma melancolia sutil. Sutherland se diverte gaguejando e mancando ao longo do filme, canalizando o arquétipo do cientista malvado.
Cidade das Sombras Estabeleceu um Novo Estilo
Todo Mundo Rouba de Cidade das Sombras, Quer Queira ou Não
Proyas fotografa seu elenco em mundos de alto contraste, com verdes escuros, marrons e sombras, frequentemente em ângulos de câmera tortos. O público não precisa olhar muito para perceber a influência de Cidade das Sombras em outros filmes como A Origem, as prequels de Star Wars, os filmes de John Wick e especialmente Matrix. Os diretores de Matrix, Lana e Lily Wachowski, sempre disseram que essas semelhanças eram coincidentais; seu filme foi gravado nos mesmos estúdios que Cidade das Sombras e reutilizou alguns dos mesmos cenários. Sem dúvida, as Wachowski também se inspiraram em cineastas como Otomo e Lynch.
Dito isso, olhos atentos terão dificuldade em engolir o apelo de coincidência das Wachowskis; outras semelhanças entre Cidade das Sombras e A Matrix persistem também. John Murdoch, assim como Neo de A Matrix, percebe que vive em um mundo que é uma simulação e que forças nefastas influenciaram sua vida. Ambos os protagonistas também percebem que possuem poderes extraordinários que irão libertar a humanidade. A Matrix chegou um ano após Cidade das Sombras e se tornou um fenômeno cultural, talvez porque focou mais em ação, efeitos especiais e se conectou à internet, que acabava de se tornar uma palavra comum. Cidade das Sombras tem uma abordagem mais modesta, dependendo de uma mistura de miniaturas e efeitos especiais CGI básicos, e permitindo que os personagens conduzam a história em vez de lutas de kung fu.
Cidade das Sombras também possui uma filosofia mais profunda, que eleva o filme acima de mero espetáculo e torna a experiência tão envolvente. Todos os personagens têm falhas profundas — a obsessividade de Murdoch, a infidelidade de Anna, a cumplicidade de Schreber com os Estranhos — que dificultam descartá-los como heróis ou vilões prototípicos. Os Estranhos cometem atos hediondos em nome da autopreservação. Até a crueldade do Sr. Hand parece ser uma fachada, não algo inato. Ele se torna um assassino para tentar ser mais humano — uma afirmação por si só.
O cerne do filme oferece uma reflexão sobre a natureza humana. Memórias e personalidade não definem os seres humanos; as escolhas sim. Emma pode lembrar de ter traído o marido, mas suas escolhas a ajudam a se redimir. Bumstead escolhe acreditar em Murdoch em vez de prendê-lo, tornando-se uma força de libertação em vez de controle. A escolha de Murdoch de salvar Emma — uma mulher que ele mal se lembra — o torna verdadeiramente heroico. As pessoas não são boas ou más por causa de onde vêm ou de suas características de personalidade. A escolha define uma alma humana e sentimentos, não poder psíquico. Como Murdoch diz ao Sr. Hand, os Estranhos não conseguem encontrar a essência da humanidade no cérebro. A alma vive nas escolhas humanas e nos relacionamentos humanos.
Dark City é um Clássico da Ficção Científica
Cidade das Sombras Mudou o Cinema
Essa filosofia perturbadora, assim como o estilo visual, o mistério e as performances envolventes, fazem de Dark City um clássico; um dos filmes de ficção científica mais importantes já feitos. Assim como Metropolis, Blade Runner, 2001: Uma Odisseia no Espaço ou A Matriz (com os quais compartilha essa conquista), o filme elevou o nível. Ele direcionou o zeitgeist para uma nova direção, reinventando o gênero e expandindo a forma como o público pensava sobre cinema.
Alex Proyas alcançou essa conquista não confiando em efeitos especiais, mas sim em estilo, clima, atmosfera e atuações impecáveis. Hollywood também deve prestar atenção a essa lição. Em uma época em que os estúdios se concentram em franquias e os diretores se obsessam por efeitos especiais, Dark City serve como um lembrete de que a familiaridade do público e a tecnologia não criam obras-primas; uma grande narrativa sim.
Assim como em Os Estranhos, Hollywood busca a alma no lugar errado. Alex Proyas e Cidade das Sombras merecem mais reconhecimento do que recebem. Assim como John Murdoch, Proyas criou um mundo de possibilidades infinitas – a mesma coisa que todo diretor busca alcançar.
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